quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Relação Interpessoal e Suas Intercorrências

Por Rosângela Brunet

"A amizade se deriva da palavra em latim "amicus";amigo, que possivelmente se derivou de amore; amar, ainda que se diga também que a palavra provém do grego) é uma relação afetiva, a princípio, sem características romântico-sexuais, entre duas pessoas"
Marc Chagall - Les Offrandes, 1958. Gouache, watercolor and brush and India ink on paper, 14 ¾ x 22 1/8 in. (37.5 x 56 cm.). @ Christie's Images, New York
No sentido amplo da palavra a amizade se refere ao relacionamento entre pessoas , o qual exige um conhecimento mútuo e profundo , tendo como base de sustentação a lealdade, altruísmo, paciência, transparência, ética é verdade. A amizade pode estar presente entre filhos e pais, irmãos, amigos, amantes e cônjuges . Atualmente amizade tem sido um artigo de luxo,onde o "mercado' pode cobrar o que quiser pela escassez de oferta Nessa sociedade consumista e materialista o esvaziamento de valores tem feito com que a busca pelo "Ser" seja substituída pela corrida frenética pelo "Ter". Charllyson Syrio Rego diz que " Nos dias atuais o Parecer-Ser e o parecer-Ter já é parte integrante das relações estabelecidas entres as pessoas no trabalho , educação, família, religião e até mesmo nas relações mais intimas, enquanto forma de comunicação e relacionamento afetivo. 
As amizades estão escassas. Não generalizando,mas a educação tem sido voltada para criar empreendedores selvagens. Diferentemente do que ensinou Max Gehringer. dizendo: ""Não eduque 
Henri Lebasque - Le bar sur la plage, 1923-25.  
seu filho para ser rico, eduque-o para ser feliz. Assim ele saberá o valor das coisas e não seu preço" As escolas estão formando técnicos que num breve período de tempo estarão sofrendo de estresse. Cada dia as pessoas estão mais solitárias e carentes. A formação familiar , até mesmo numa família funcional, tem criado sujeitos narcisos,arrogantes e voltados apenas para a busca do sucesso.
A capacidade de perceber o belo ou o bom no outro é uma qualidade que traz benefícios para a saúde mental.Porém, nem todos a possui. Atualmente as relações tem sido mais contabilizadas do que propriamente vivenciadas. As amizades estão escassas. Não generalizando,mas a educação tem sido voltada para criar empreendedores selvagens. Os holofotes tem sido a meta desta geração.Estamos sendo vitimas da cultura da imagem que produz a sociedade do espetáculo. Raramente a definição de felicidade atravessa o conceito de bem estar .Há um fato que tem me chamado a atenção nas redes sociais e até mesmo no dia a dia no convívio profissional.A intensidade com que algumas pessoas interagem com as outras esta ligada diretamente ao benefício que estas outras podem trazer para elas. No fundo essas pessoas estão sempre voltadas para si mesmas, ainda que isso seja velado, e ainda que mascarado por alguma ação "bondosa".Observa-se que nesses casos há uma busca constante de algum tipo de reconhecimento social , ganho secundários, ou recompensa .Há até alguns casos onde a necessidade de controle ou poder é a motivação dessas atitudes bondosas.

O fato é que não é fácil encontrar pessoas capazes de se dispor de algum minuto de seu tempo para olhar para os lados e ver o outro de alguma forma. Todos estão com muita pressa de chegar não sei aonde. Isso é uma característica de nossa época. Mas eu diria que estamos vivendo numa geração de narcisos.Pessoas que não abandonaram seus espelhos , não cresceram e não aprenderam a suportar a perda "da ilusão de si mesmo" O narciso é assim, só ama o que é espelho porque não sabe identificar o que difere de si mesmo.Se não for ele não é bom,O narciso só curte o que reflete ele,só ouve sua voz, só entende se a mensagem saiu de sua criação, é desprovido de tudo que o diferencia, e não pode consagrar o outro como personagem principal. Tudo tem que girar em torno do seu espelho.A luz da ribalta tem brilhar só nele.Eu repito o disse Ana Jácomo :“Tomara que a gente não desista de ser quem é por nada nem ninguém deste mundo. Que a gente reconheça o poder do outro sem esquecer do nosso.Que as mentiras alheias não confundam as nossas verdades."
A lealdade e a ética tem sido valores escassos, os quais vagueiam distantes do universo dos narcisos , pois a luz não atinge esse ângulo de sua "reflexão". Se quebrarmos seu espelho eles perdem o olhar, o mundo sai da sua perspectiva, e eles ficam cegos.O sentimento de inveja , o egocentrismo e o individualismo são alimentos e força motrizes para narcisismo.Competição é o sobrenome deles. Estão sempre olhando para eles mesmos e buscando apenas o que interessa ao seu próprio benefício.Eles não sabem amar o outro que não seja ele mesmo no espelho. Eles se amam sendo o outro sua extensão. Eles enganam as pessoas com discursos bonitos ,mas o que querem é obter em você o que será utilidade para eles, e em nenhum momentos eles desejam o outro como indivíduo.Eles nem sabem o que é isso. Só reconhecem o que é semelhança deles mesmos.Qualquer diferença será interpretada como erro de interpretação, e mesmo assim, isso só será possível se eles perderem o ângulo de sua visão (quando o espelho sai de sua frente). Infelizmente , por várias razões, temos vivenciado isso nessa época. Nesse trânsito de discursos falsificados as rodovias da verdade se tornaram lugares desabitados. O amor espera do lado de fora, o altruísmo esta em liquidação por sobra de estoque.As frases de efeito estão lotando os perfis dos Facebook e blogs. Há poesias demais e pouca vivência verdadeira..
. "A gente só descobre isso depois de grande (…). Que o tamanho das coisas há de ser medido pela intimidade que temos com elas.Há de ser como acontece com o amor.Manoel de Barros
O que penso ser verdadeiramente importante refletir é á respeito da existência.O capitalismo criou um pensamento levando o indivíduo a aprender a viver sob condições meritocratas - filosofia imposta pelo consumismo.Você tem o que merece. 
De acordo com RUDIO (2001) Ser, enquanto construção pessoal, é fruto da responsabilidade assumida com relação à própria existência, na busca de mantê-la e aperfeiçoá-la; é buscar realizar-se dentro das condições de seu existir no mundo.Não-Ser é a negação de si, infidelidade para consigo mesmo e a frustração das próprias realizações pessoal.A busca pelo Parecer-Ser e Parecer-Ter, é representar papéis na busca de estima, admiração, prestigio e poder, papéis estes que não tem nada a ver com o indivíduo em questão." 
Nessa jornada de superficialidade atravessando nosso mundo, teremos que desenvolver meios mais eficazes para nos defendermos de toda carência e solidão , que acaba por atravessar esse universo desencantado de máscaras e papéis mal interpretados. 
Fernanda Gaona escreveu algo interessante sobre a dificuldade atual de nos tornarmos sentimentalmente ativo. Ela diz que ":Na era da geração auto-suficiente ser sentimentalmente ativo é um privilégio. Na geração em que a aparência vale mais que mil palavras, colocar o coração pra funcionar é quase artigo raro. Ponto para aqueles que “sobreviveram” as atitudes egoístas e que não se venderam a nenhum ato mesquinho. Sorte de quem enche a boca pra dizer o que sente e acende os olhos pra comprovar que é verdade"
A auto-suficiência é uma faca de gumes, pois ao mesmo tempo que aponta para o conceito de independência emocional ,se impõe ao indivíduo como forma de defesa contra as "relações líquidas", tornando- se refém da sua própria solidão. Por isso,ser sentimentalmente ativo é ter coragem de assumir o que se sente, e ser verdadeiramente aquilo que se é, assumindo o risco de enfrentar o egoísmo daqueles que abandonaram a essencial função da existência: Ser.
O preço a ser pago por isso , muitas vezes, pode ser parecermos ridículos, ou até sermos rejeitados ,mas o resultado desta escolha pode nos levar a verdadeira satisfação pessoal. Claro que, como disse Whitmont, " Em sociedade, é importante desenvolvermos nossas personas assim como um ego adequado para que possamos nos relacionar com o coletivo. Devemos ter em mente, a necessidade dessa exigência, não deixando de lado, porém, aquilo que realmente somos. "Temos de descobrir que usamos nossas vestimentas representacionais para proteção e aparência, mas que também podemos nos trocar e vestir algo mais confortável quando é apropriado, e que podemos ficar nus em outros momentos. Se as nossas vestes grudam em nós ou parecem substituir a nossa pele é bem provável que nos tornemos doentes"[1].
E, é nessa cena representada pela vida, que se torna imprescindível descobrir qual a roupa adequada para vestir, e por quanto tempo ela deve permanecer em nós. Saber diferenciar esse movimento é essencial a saúde, e é ai que a amizade se torna uma condição "Sine qua non", ou seja, "sem a qual não pode deixar de ser".A amizade é indispensável na construção desse tecido delicado da existência.É o ingrediente da construção das relações afetivas.Seu significado é plural, mas sua função é singular.Mas onde encontrar esse fenômeno tão escasso na natureza.Por onde se inicia esse 
tipo de relação que poderá ser chamada de amizade? Porque existe tanta gente solitária?
Essas perguntas são bem complexas, e não me atrevo aqui a respondê-las,mas tenho uma opinião que vem sendo formada em mim nestes últimos anos da minha vida, em função de algumas observações e experiência profissional.
Nestes últimos anos a globalização se tornou uma porta aberta para o conhecimento do mundo. Regimes políticos caíram pela abertura do mercado e disseminação do conhecimento. A velocidade das mudanças são assustadora. O que você sabe hoje pode ser antiquado no ano que vem.Sabemos tudo sobre a vida alheia , dos políticos, dos personagens da novela ; outros países não são mais horizontes tão longe assim. Porém fomos aos poucos nos afastando de nós mesmos ,bem como de nossos familiares.Sabemos muito sobre os avanços da ciência mas estamos ainda muito longe de conhecermos a nós mesmos.
Friedrich Nietzsche disse: "Nós, homens do conhecimento, não nos conhecemos; de nós mesmos somos desconhecidos - e não sem motivo. Nunca nos procuramos: como poderia acontecer que um dia nos encontrássemos? Com razão a (Bíblia ) disse: 'onde estiver teu tesouro, estará também teu coração'. Nosso tesouro está onde estão a colmeia do nosso conhecimento."
Esse distanciamento de si mesmo possibilitou uma atitude voltada para se desculpar sobre meios que tem sido utilizados, á fim de atingir os fins egoístas e individualistas de valores gananciosos; e com isso, o conceito de respeito, lealdade, verdade, compromisso, ética foi alterado pela mudança de valores. O que importa agora é atingir os parâmetros de uma sociedade, que hoje só valoriza o indivíduo que segue seu modelo consumista. 
A massa mantém a marca, a marca mantém a mídia e a mídia controla a massa"George Orwell
Pessoas cada vez mais tem se tornado inseguras,e a depressão, o estresse, a Síndrome de ansiedade,a Síndrome de Pânico,bem como Transtorno Obsessivo Compulsivo se tornaram as doenças contemporâneas; e uma das causas é a dificuldade que encontra-se de atingir os padrões impostos selvagemente pelo materialismo ,o qual encontrou, por sua vez, no vazio existencial, a oportunidade de crescimento e expansão de seus produtos. Como bem disse Kléber Novarte: "O sucesso - como está sendo pregado - é só mais um produto na prateleira do consumismo.E , é neste preâmbulo dessa pregação que os indivíduos andam se perdendo, e se vendendo a preço de inexistência. Isso mesmo! A existência tem sido anulada pela nova moda ideológica ou materialismo .Não sou contra o capitalismo, mas qualquer tirania é uma transgressão existencial. Abigail Vun Buren disse que o indicador de caráter de uma pessoa é como ela trata alguém que não pode lhe trazer benefício algum .Eu acrescentaria um outro indicador: A forma como uma pessoa lida com o poder e com o dinheiro.Material de construção desse cenário atual. É nessa linha de pensamento, que podemos inferir a razão do afastamento afetivo e emocional nos relacionamentos. Eu diria que o egoísmo , o individualismo, egocentrismo e ganância deram lugar a lealdade, companheirismo, altruísmo, paciência, transparência, ética é verdade.Ingredientes que poderiam se constituir uma amizade sólida se tornaram característica do arquétipo de "heróis" em quadrinhos, ou de filmes de mocinho e bandido .
Um reflexo dessa realidade são as redes sociais, onde a trama da amizade tem sido disfarçada e mediada pela tela de um PC ou celular. Ninguém agora sabe mesmo quem é quem. Dai chamar-se virtual. O problema é que , o que deveria ser mais uma ferramenta de aproximação, se tornou a forma de se aproximar. Ali neste universo se podemos encontrar 1.200 amigos num perfil só , mascarando a solidão de um indivíduo que não sabe ,muitas vezes, nem se relacionar. Ali se pode simular alguns sentimentos e disfarçar outros. 
Se formos pensar na construção de algum tipo de existência permanente poderia citar uma frase de Jonh Mawel que diz " "Nós transmitimos o que sabemos e reproduzimos o que somos" Ou seja, no que se refere a conhecimento podemos nos apropriar da realidade virtual,mas quando se deseja a permanência nada poderá substituir a experiência na formação da identidade. O que deixaremos é aquilo que somos e não o que possuímos.Por isso, a necessidade de se resgatar a essência do significado da amizade é fundamental na permanência e consolidação da existência.
"A amizade é o conforto indescritível de nos sentirmos seguros com uma pessoa, sem ser preciso pesar o que se pensa, nem medir o que se diz" George Eliott

Acho que perdemos justamente esse conforto na busca de corresponder às demandas de uma sociedade voltada para a cultura da imagem, e que cultiva o materialismo por ser justamente sustentada pelo consumismo. 
Em seu livro sobre "Mídia, poder e contrapoder", Dênis de Moraes fala que "O sistema midiático contemporâneo(...) evidencia a capacidade de fixar sentidos e ideologias,interferindo na formação da opinião pública e em linhas predominantes do imaginário social(...) os discursos e falas massivas da mídia se projetam como intérpretes e vigas de sustentação do ideário privatista do neoliberalismo e variações associadas. Incutem e celebram a tirania do dinheiro, a competição e o lucro, propagando valores e modos de vida que transferem para o mercado a regulação das demandas coletivas, como se isso fosse possível. Ao mesmo tempo, procuram neutralizar o pensamento crítico e as expressões de dissenso, reduzindo espaços para ideias alternativas e contestadoras, ainda que estas continuem se manifestando, resistindo e reinventando-se..Operam, consensualmente, para reproduzir a ordem do consumo e conservar hegemonias constituídas. Os mega grupos midiáticos detêm a propriedade dos meios de produção, a infraestrutura tecnológica e as bases logísticas, como parte de um sistema que rege habilmente os processos de produção material e imaterial.. esse sistema exerce interferência crucial na circulação de informações, interpretações e crenças indispensáveis à consolidação de consensos sociais" 
Eu termino esta reflexão com um trecho de Sigmund Freud, em "O Mal Estar da Civilização", o qual diz:"Se o desenvolvimento da civilização é tão semelhante ao do indivíduo, e se usa os mesmos meios, não teríamos o direito de diagnosticar que muitas civilizações, ou épocas culturais - talvez até a humanidade inteira - se tornaram neuróticas sob a influência do seu esforço de civilização?"

Referências
[1] (Whitmont, p.140).( BOLETIM CLÍNICO - número 20- julho/2005 - PUC-S
[2]Dênis de Moraes, Pascual Serrano e Ignacio Ramonet ,In " Mídia, poder e contrapoder- da concentração monopólica à democratização da comunicação"
[3]NIETZSCHE, Friedrich, Genealogia da Mora

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