sábado, 16 de maio de 2015

Francesca Woodman : O Corpo em Dispersão

Francesca Woodman : O Corpo em Dispersão
POR BIANCA COUTINHO DIAS
Revista Tab


Francesca Woodman criou uma extensa obra fotográfica e produziu, em sua maioria, fotografias em preto e branco nas quais se auto-retratava em paisagens diversas: sua casa, jardins, construções abandonadas, florestas. São imagens densas, vertiginosas e que nos fazem viajar por abismos e destroços insondáveis, provocando uma sensação de estranha familiariadade, com sua presença de força indescritível, que atrai e seduz, sem que possamos apreender ou reter aquilo que passa diante dos olhos, que permanece como um vulto poderoso e enigmático, assim como sua vida-curta, intensa e rodeada de enigmas. 

FRANCESCA WOODMAN 
EM TÍTULO (NEW YORK) 1979-1980 | IMPRESSÃO DE PRATA COLOIDAL 21 X 21 CM


FRANCESCA WOODMAN 
FROM POLKA DOTS (PROVIDENCE, RHOD |
 IMPRESSÃO DE PRATA COLOIDAL 13 X 13 CM 
FRANCESCA WOODMAN 
SEM TÍTULO (PROVIDENCE, 
RHODE ISLAND) 1975-1978

  
O susto parece inevitável. Assim foi Francesca na sua experiência com a fotografia, mas, sobretudo, na sua viagem vertiginosa ao real do corpo. Assim vamos nós, ao encontro das suas imagens – o extático através das retinas. E o que se vê são blocos de intensidade que se espalham
Lacan, em um texto sobre Merleau-Ponty estampado por Les Temps Modernes, em 1961, atribuiu à obra de arte o lugar do que não se poderia ver a olho nu, vale dizer que uma definição provisória da obra de arte seria, portanto, a de que ela é um artefato que vê, em suma, a invisibilidade do visível. Nas imagens de Francesca, no invisível que se revela, há sempre uma pulsação de intensidades. O desejo não cessa de deambular entre fluxos, pensamentos, volúpia, pele. O corpo de Francesca parece amarrado ao seu limite, mas dele escorre uma leveza indescritível. em torno do espaço, fragmentando-se ao limite, subvertendo os contornos da própria subjetividade, evidenciando a potência de uma imagem que está sempre migrando para outro lugar.

Woodman entrou para a fotografia usando o corpo como experiência, como laboratório de si. Fez uma viagem sem volta ao limiar do corpo, como se percorresse seus limites para encontrar o inevitável: sua imagem-vulto, uma quase miragem, algo que atravessa o espaço intenso da vida refletindo uma outra imagem, o além de si, que vaga desfocada, entranhada entre o tempo e espaço, como se deles fizesse parte, mas sem habitar nenhum, como uma sombra que toca sensivelmente nas coisas atravessando as superfícies mais rudimentares, transitando pelas coisas. 
FRANCESCA WOODMAN | SEM TÍTULO
DA SÉRIE FROM THE THREE KINDS OF MELON IN FOUR
KINDS OF LIGHT (PROVIDENCE, RHODE ISLAND) 1976
| IMPRESSÃO DE PRATA COLOIDAL 11,5 X 9,5 CM
Corpo-dispersão-sem rosto, que quando mirado se dissipa entre as coisas do mundo, corpo enterrado na fronteira entre a ausência, a aparição. Seu rosto também pouco revela. A verdade de sua aparência é um exílio. Sua imagem não é a revelação de uma realidade, mas de uma sombra. Por vezes ouvimos Artaud: o pulsar o corpo sem órgãos; por vezes Bataille: a febre e a intensidade; mas por vezes, entre a sombra e a claridade, o canto silencioso de Rilke: a sombra da morte. Estamos na perspectiva da sensação, numa leitura-gozo que faz o olhar mergulhar no absurdo e nele se perder, como se seu corpo estivesse mergulhado em um contínuo jogo de simulacros em que a origem, a verdade, a matriz há muito se apagou. Não há realidades, mas tudo é o que é: um corpo estendido no deserto de uma paisagem. O deserto é a fotografia, mas o corpo parece atravessado de sensações, de febre. Tudo parece vivo e morto e transcorrendo pela linha que cruza uma realidade a outra. As linhas estão sempre se encontrando, fabricando dobras, aberturas, fissuras pelas quais os olhares atravessam e são arremessados para o terreno da epifania e do sublime.
As imagens são desconcertantes por suas improbabilidades, e se assemelham, muitas vezes, a uma imagem de sonho, intempestivas e alheias a encadeamentos causais.
Na constância do ato de se fotografar, Francesca Woodman estava constantemente forjando uma ruptura de si no corpo das coisas, tecendo linhas de fuga entre seu corpo e a carnalidade do mundo. O mimetismo se dá somente como lapso, gesto inacabado, puro devir-mundo.
O que vemos são fluidos, que podem ir para qualquer lado e que tem a força da imprevisibilidade e do descentramento. O que nos causa no seu gesto de auto-retratação é a criação de imprevistos e fugazes contornos, confissão de uma vida que vive na obra, uma erosão em si mesmo, um macular-se enquanto sujeito, para criar a vida do eu que vive na obra – em refrações, abandonos e dissoluções de si; imagens que nos tocam e que nos acompanham por muito tempo. O que acontece quando nos saltam aos olhos pela primeira vez é tão poderoso que seu efeito retumbante dificilmente deixará de ser sentido. Voltamos a elas, quando elas próprias não se precipitam, atropelando nosso espírito, trazendo à flor da pele o mesmo arrepio, a mesma sensação de vertigem. Permanecemos ligados a elas por uma interrogação em aberto, por um elo estranho, enigmático, sempre restabelecido, sem jamais perder o impacto – assim é a fotografia de Francesca Woodman – abismo para quem tem asas, morte e vida se encarando, a possibilidade de se deixar transportar para um ambiente fantasmagórico, profundamente emocional e sensual e ocasionalmente, perturbado e violento. O brutal e o delicado em diálogo. Não é possível ficar-lhe indiferente pela beleza, pela estranheza e pela audácia. Francesca também não ficou indiferente ao trampolim do real e suicidou-se aos 22 anos, nos deixando seus rastros indeléveis e sua presença,paradoxalmente, tão cheia de sopros de vida e élans criativos, em suas fotografias repletas do paradoxal encontro entre força e vulnerabilidade.
A exposição de Francesca Woodmam esteve em cartaz na Galeria Mendes Wood que fica na Rua da Consolação 3358, Jardins em São Paulo.
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Outro Ensaio de Francesca Woodman no link http://artepsihefzibabrunet.blogspot.com.br/2015/05/francesca-woodmans-zen.html


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