sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Reflexão Sobre o Filme “Santiago”


de João Moreira Salles
Por Christian Ingo Lenz Dunker


Há uma crítica que aponta como a psicanálise muitas vezes se serve da arte apenas para confirmar ou ilustrar suas próprias ideias e conceitos. Creio que no caso de Santiago, e de outros filmes correlatos, trata-se de entender sua eficácia terapêutica de certas experiências estéticas. Trata-se de descobrir como certos filmes conseguem obter efeitos de cura, análogos aos de um tratamento pela palavra. Desde a tragédia grega sabemos que experiências de catharsis podem induzir transformações subjetivas ou favorecer processos criativos ou sublimatórios. Mas isso não explica por si mesmo como funciona a catharsis. Ademais a redução da catharis a uma ab-reação de afetos, conforme as primeiras intelecções freudianas sobre o assunto, terminou por encarcerar este conceito no âmbito da técnica e da terapia, esquecendo-se que na origem a tragédia tem que ver com a ideia de cura.

Quando discuti o filme com João Moreira Salles, em 2008, percebi o que podia significa a expressão “cinema de autor”, geralmente usada para designar filmes dos anos 1960 na França (Godard, Truffaut), ou dos anos 1950 na Inglaterra (Hitchcock) ou ainda nos Estados Unidos dos anos 1970 (Casavettes, Scorcese, Polanski) ou no seu último remanescente Woody Allen. O cinema de autor sugeria um processo inteiramente dominado pelo diretor que possuiria autonomia e ingerência em cada parte do processo de produção, desde o casting até a trilha, desde o roteiro até a montagem. O cinema de autor é considerado, por alguns críticos, como a única forma de cinema na qual a psicanálise pode ter alguma contribuição, porque neste caso temos a individualização necessária para transportar elementos de um campo a outro. Como se a ficção de unidade, representada pelo diretor, fosse necessária para interpretar a identidade estética da obra. Contudo, ao escutar João Salles falando do processo do filme, o que emerge de modo saliente é justamente o contrário. O “poder” do diretor é tremendamente inerme diante da força do objeto fílmico, das restrições estéticas, das contingências de produção. Em Santiago a vítima, ou seja, o mordomo que funcionaria apenas como suporte indefinidamente maleável para o processo de rememoração da infância, do agora adulto diretor, escapa ao controle. E escapa apesar da infinita boa vontade de Santiago. Ora, nada menos demiúrgico do que esta “resistência do material”. O mito do diretor-soberano não deve ser derrogado porque o cinema é um processo coletivo de interesses e compromissos múltiplos (produtores, indústria do entretenimento, público, crítica, afora os processos de realização do filme), mas porque mesmo sem uma instância central ela pouco pode contra a coerção dos processos de linguagem e de força inerentes à matéria do cinema. Ou seja, exatamente como na metapsicologia psicanalítica, na qual o indivíduo egológico é apenas uma ficção para dar unidade a uma gramática de divisões subjetivas, o cinema na sua forma “normal” de indústria cultural prescinde de uma unidade psicológica para tematizar seus próprios processos.
Mas, a despeito disso há filmes que curam. E é preciso saber como eles fazem isso. A primeira questão é saber do que este filme nos cura. Da tensão de classe entre patrões e empregados? Da discrepância entre sonhos de infância decepções do adulto? Dos conflitos familiares e do ressentimento social? Dos impasses da história “interrompida” do cinema no Brasil? Da relação que faz de toda criação uma reparação (no sentido Kleiniano, mas também no sentido do filme e do livro “Desejo e Reparação”? Ou talvez a cura seja a cura do complexo de Ozimandias, do qual sofre todo aquele que cria?
Lembremos que Woody Allen inventou, aliás, muito propriamente, o complexo de Ozimandia, extraído da poesia de Shelley, para descrever a trágica descoberta, feita pelo artista, de que mesmo a maior perfeição de sua obra não o salvará da morte e do desaparecimento. A referência aqui é o imperador babilônico Ozimandias que manda erguer uma imensa estátua de si mesmo, o que não a impede de desaparecer sob as areias do deserto como uma ruína esquecida. Contudo, não seria este mesmo o processo que faz equivaler a cura com a dissolução do eu? Processo cultural, como pretendia Hegel, que resulta na formação de um objeto que contém e nega a sua história.
Talvez seja inerente aos processos de cura enfrentar a própria indeterminação do nome daquilo que deve ser curado. Quiçá a cura termine com a nomeação, e ao mesmo tempo comece pelo reconhecimento da insuficiência de todos os nomes. E se a cura for apenas o enlace precário entre as diferentes formas de mal-estar que nos governam? E o que Freud chamava de fusão e desfusão das pulsões, de vida e de morte, possa incluir o sofrimento do que ainda não tem nome e do sintoma está saturado de nomeações .
O filme Santiago (2008), de João Moreira Salles nasce como um filme “potencial” sobre a viagem de sua mãe à China durante a Revolução Cultural. Ele sucede uma série de documentários que tem por traço comum a tensão entre o estético e o político. Entreatos (2004), narra a trajetória de Lula,Nelson Freire (2003) fala da criatividade de um pianista, Notícias de uma Guerra Particular (2000) aborda a estetização da violência, Futebol (1988) examina o fenômeno catártico das massas.
Seriam estratégias afins com a psicanálise, pois ambas perguntam qual passado para qual futuro a partir de qual presente? Ou simplesmente porque o gênero do documentário exige a reconstrução da experiência, tal qual esperamos de nossos analisantes? Ou seria, além e depois disso, porque se trata da engenharia particular pela qual ficção e realidade se misturam na produção temporal da verdade. A verdade da história ou a história da verdade? Tal como nos deparamos com esta mistura entre lembranças, fantasias, evidências e deformações, o cinema recorre ao indeterminado “inspirado em fatos reais” ou “qualquer semelhança com fatos ou pessoas terá sido mera coincidência”. Pode-se ainda argumentar que o documentário é um gênero impossível não porque tudo é relativo e a ficção é um espaço de liberdade gratuito, pelo contrário, nada menos restrito do que a relatividade de cada fantasia, ou de cada fantasia ideológica. Mas o documentário não é um gênero impossível (como A mulher é outro gênero impossível) porque ele é relativo aos pontos de vista presumidos, mas porque nele, mais do que em outros gêneros confirmamos a tese de Eisenstein de que a essência do cinema é o corte. Se há cinema há corte, e se há corte há um real que fica “contornado” pelo discurso fílmico.
“Por ser muito pessoal, as pessoas têm a impressão de que cada dia na ilha de edição era uma sessão de psicanálise, que eu saia chorando. Agente realmente ria muito, até pelo ridículo de meu comportamento que o material bruto revelava. Não sei direito porque falam em coragem.” (João Moreira Salles - Entrevista à Folha de São Paulo 13/08/2007)
Mas é exatamente isso que se deveria esperar de uma psicanálise? Não apenas choro e agonia, mas a possibilidade de fazer um documentário da própria vida de tal forma a levá-la menos a sério e mais a sério, ou seja, rir-se dela. O humor é uma das poucas estratégias tematizadas por Freud, como eficazes contra esta espécie de síndico do Mal-Estar na Civilização, ou seja, o superego. ”aquela” reza que não volta mais, mas também “aquela” reza que cura, ao inventar outro futuro possível, pela profunda experiência do presente.
Não tinha a noção de que, na verdade, não fiz um filme sobre Santiago, mas sobre a minha relação com ele. Não havia ali uma relação de documentarista e de documentado. Havia uma relação de patrão e mordomo, de, em última instância, chefe e criado. (Thiago Camelo)
Santiago é um percurso que se inclui a si mesmo, um filme sobre o filme, mas não todo. Ele não é um filme alegórico. Em geral filmes alegóricos são de amargar pela sua covardia. Santiago é um filme de formação, como se diz em relação ao gênero, florescente no século XVIII, um romance de formação, que incluía a narração da experiência como parte da própria experiência. É um filme dialético no sentido em que coloca em sincronia um conjunto de contradições: os sonhos Brasil anos 50 e a casa abandonada dos anos 90. Promessa e decepção se resolvem em uma espécie de saudades de um tempo em que o Brasil quis pensar a si mesmo, como um adolescente que descobre-se em aguda necessidade de separação. Se o lugar do Brasil mudou mesmo, o cinema perdeu seu lugar como voz desta transformação?
Estão ali as questões clássicas dos intérpretes do Brasil: a vida privada e a vida pública (sincretismo brasileiro), o conflito de classes miniaturizado, o “grupo maldito” e os outros grupos, o apelo às dinastias monárquicas em casa de burguesia, o argentino-italiano (sozinho) em solo brasileiro. Mas o filme que poderia ter sido a casa e o mordomo transforma-se em um filme sobre duas pessoas e uma experiência impossível: uma relação impossível.
Em Santiago, ao contrário dos romances de formação clássicos como Jovem Meinster de Goethe, ou o Sobrinho Rameaude Diderot, as contradições que não se resolvem em um final triunfante. Mas em Santiago as contradições são postas e construídas, mas não dissolvidas e superadas. Elas também não são deixadas ao ar, com aquele sabor moral do apelo fácil ao estúpido inefável da existência. A sua forma já é seu acabamento, sua captura do tempo é o próprio trabalho que faz a experiência se completar com sua narrativa, tal como ocorre no processo da cura. A cura é sempre a cura do que poderia ter sido, das outras vidas dentro da vida, do conflito insuperável entre o possível e o impossível, entre o necessário e o contingente. Daí as expressões “cura de um grande amor”, “cura de uma perda”, “cura da angústia”, “cura das ilusões”, ou seja, a noção de cura convoca impasses que não são exatamente problemas, mas condições existenciais, experiências refratárias, mas nem sempre traumáticas. Aliás, o impossível e a contingência são das duas figuras lógicas maiores do Real em Lacan. E o que Santiago mostra é justamente esta impossibilidade de “refazer” a experiência perdida da infância, e por outro lado como esta impossibilidade é realmente “refeita” se reconhecemos as contingências que o sobredetermina. Isso ocorre necessariamente pela intercessão do tempo. O primeiro filme, que poderia ter sido sobre a infância feliz de uma família e de um projeto de Brasil. Seu fracasso, sua irrealização, a morte de Santiago são vividos inicialmente como impotência, denunciada pela cólera do diretor em fazer a realidade constranger-se ao que ele tinha “em mente”. O segundo filme retoma o primeiro explorando o seu fracasso não mais como uma impotência (do montador, dos recursos dramatúrgicos de Santiago, da astúcia da direção), mas como uma impossibilidade. Finalmente, há o terceiro filme, que é o que o a recepção constrói ao interpolar a aventura de Santiago neste momento histórico que é o seu, transformando-o em um encontro contingente.
Em sentido inverso e regressivo, Santiago faz parte do chamado cinema da Retomada, no duplo sentido: retomada do processo brasileiro de produção e filmes e retomada da história do cinema brasileiro, de certa maneira “interrompido” após o Cinema Novo e o Cinema Marginal dos anos 1960. A Retomada não é apenas na chave da história política, mas também da chave estética e mais ainda na chave pessoal. Aqueles que querem reduzir a leitura psicanalítica do cinema à interpretação de personagens deveriam rever o papel do herói desde a tragédia antiga, não apenas como senhor e artífice individuado de seu destino, mas também como proto-agon, como protagonista, ou seja, aquele que vive em si o agon (o conflito), mas de tal maneira que ele pode ser percebido como universal. Há aqui uma confusão entre interiorização de conflitos sociais e a negação de conflitos sociais por meio de sua psicologização.
Santiago é uma cura para o ressentimento. Não uma cura reconciliatória (do necessário ao possível), mas uma catharsisdesintegrativa (do impossível ao contingente). O seu verdadeiro problema é como recusar suas formas mais simples e brutais de exercício do poder, que se infiltram e se disseminam em ambições e decisões estéticas.
"Tinha vontade de editar esse material com duas ou três locuções diferentes. A primeira seria eu, que não apareço no filme, falando sobre as imagens. A outra seria de um personagem que está no material, pensando naquele momento sobre a viagem. E a outra, de um personagem periférico. É sempre o mesmo material, que adquire sentidos diferentes. Não é nada novo, original, mas está um pouco mais no caminho do que me interessaria fazer."
O enquadramento opressivo, formal, o “controle da cena”, a repetição das falas, traz para o interior do filme aquilo que deveria ser ocultado pelo corte e edição. Os ensaios, as imitações de naturalidade, a construção do personagem. Este tensão entre montagem visível e a montagem invisível não consagra-se a demonstração de que “o mordomo, afinal um agregado, era só um espelho”, como disse Inácio Araújo. O mordomo sai de seu lugar e desfoca a imagem. A beleza da morte (“la gran partita”); a grandioloquência da relação com o destino (“en cem anos estarão todos muertos”) diante da praia de Copacabana, a importância da “arquivística”, como tática de sobrevivência simbólica e esforço de pertencimento se manifesta na ênfase nos pequenos gestos metonímicos: os arranjos de flores, o fraque na casa deserta, na música de Beethoven. É pela lógica do “pequeno detalhe que o filme se mantém vivo”, como afirmou Cezar Migliorin. Na posição “impossível” diante a morte e no acolhimento da contingência da vida, Santiago é o testemunho moderno de uma experiência trágica.
A loucura genealógica de Santiago, que refaz criteriosamente as famílias reais dos mais diferentes países e épocas, jamais é reduzida a uma psicose bem organizada, assim como a sua orientação sexual, apesar da sutil autodeclaração em contrário, não é patologizada. Se a genealogia é um delírio, ela aparece no filme muito mais como uma tentativa de cura. E a loucura está para a cura assim como a psicose está para o tratamento. Só que enquanto a psicose nos traria a experiência particular de Santiago, a loucura nos traz este grão de verdade universal, que nos concerne a todos, em nossa própria racionalidade genealógica.
A interpolação de fragmentos de um filme em Super 8, com filmagens “naturalísticas” das lembranças de uma família, brincando na piscina (em silêncio) não funciona para dar maior realismo e portanto fidelização do espectador ao valor da lembrança, mas ao contrário, concorrem para enfatizar o fracasso que é a estrutura mesma do filme, como deveria ser a de qualquer processo de cura. Um fracasso bem realizado, um fracasso produtivo, isso é o de que se trata no filme. Isso é o que se espera da psicanálise.
Em meu último livro “Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica” procurei valorizar a noção de cura em psicanálise. A cura - Kur em alemão, cure em francês – não deve ser confundida com o tratamento (Behandlung) e com a terapia (Therapie), se bem que os três procedimentos concorram no interior da prática psicanalítica e na história de sua formação. Alguns objetam que a noção de cura descende da medicina e deve ser descartada, pois na psicanálise não curamos pessoas como se cura uma gripe. Outros criticam o termo porque ele soa religioso demais, como as curas que ocorrem em Fátima ou Lourdes (sempre mulheres?), ou as curas mais ou menos metafísicas que ouvimos falar em nossos tempos new age. Apesar destas duas raízes cercarem a noção de cura, podemos recuperar um terceiro sentido, quiçá descendente da antiga noção grega de catharsis, ou seja, a ação transformativa que as obras de arte exercem sobre o espírito humano. Há, no interior da noção de cura, uma combinação entre exigências estéticas e políticas para as quais deveríamos prestar mais atenção. Não me refiro à política como sistema institucional de partidos e gerência do bem comum, mas da política como encruzilhada impossível entre as exigências para governar (exercer o poder sobre si e sobre outrem) e para recusar o poder (forma como a autoridade simbólica usualmente se cria e se propaga). A cura não é a negação desta relação, como sugere a noção de cura de uma doença e a cura também não é a elevação desta contradição à dimensão metafísica, como sugere a noção de cura mágica. A cura é o reconhecimento e colocação desta contradição em uma forma que aspira sua universalidade em uma sociedade por vir.
Devíamos, neste sentido, corrigir a afirmação de Guatarride que o cinema é o divã do pobre, para o cinema é a cura, no sentido do reconhecimento, de que existem pobres e ricos, existem homens e mulheres, existem gregos e romanos, existem senhores e escravos. Mas qual a natureza ontológica deste regime de existência? Neste ponto Lacan ofereceu uma resposta diferencial: entre homens e mulheres ocorre uma “não relação”, contudo entre mestre e escravo, entre professor e aluno, entre a histeria e seu mestre ou entre analista e analisante o que ocorre é uma “relação impossível”. A “não relação” e a “relação impossível” são duas figuras do que Freud chamou de Mal-Estar na Civilizaçãoe que Lacan abordou com o conceito de Real. Ora, se o Real “veio para ficar”, se ele é a posição insuperável, qual é seu destino? O que fazemos com ele? Deleuze disse que isso levava a psicanálise a uma moral da resignação. Ora, faltava a Deleuze, como a Guatarri, a idea de cura. Se o Real não tem tratamento (mitigar o sofrimento), nem terapia (consolar se com a impotência), ele passou a ser designado como o “incurável”. Portanto, o real é o negativo da cura e por ela se define. Assim como o desejo do analista define-se pela negação do “desejo de curar”, portanto presume a cura, o Mal-Estar define-se pela negação do Bem-Estar e presume o estar. Isso nos leva ao lema freudiano: Wo Es war, soll Ich werden”, ou seja, “Onde Isso estava o Eu deve advir”, ou seja, estar, veir a ser, advir, por vir. O Mal-Estar que se aborda pela cura é o que aproxima a prática da psicanálise de uma experiência estética.
Christian Dunker é Psicanalista, Professor Livre Docente do Depto de Psicologia Clínica-IPUSP, Analista Membro de Escola da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental, Doutorado (IPUSP) e Pós-Doutorado pela Manchester Metropolitan University (UK). Autor de vários livros, entre eles o vencedor do Prêmio Jabuti 2012: “Estrutura e constituição da clínica psicanalítica: uma arqueologia das práticas de cura, psicoterapia e tratamento” (ed. Annablume, 2011)

Fonte :http://cinefreudiano.blogspot.com.br/2013/04/filmes-que-curam-santiago-de-joao.html?spref=fb

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